Biógrafos têm dessas: gastam tempo demais com as fanfarrices de coronéis corruptos ou as estripulias de barões mulherengos e deixam de lado os pequenos notáveis. Parou para pensar numa sinfonia sem carregador de piano? Nesta semana, Os Paulistas é especialmente dedicado a contar a história de Abelardo Trenttini. “O sheik manso de Moema” é um personagem indispensável para a história da televisão brasileira. Pode-se dizer que sua vida está para a telinha assim como a ressaca está para o envazador de garrafas.
O começo da saga de nosso personagem é incerto, mas o que ninguém põe dúvida é na sua participação naquela noite de 3 de abril de 1950. Doutor Assis recebia convivas dos mais recônditos cantos do Brasil no saguão dos Diários Associados, na rua 7 de Abril, com toda a pompa e circunstância que a chegada da televisão representava. A festa rolava solta, mas Trenttini não tinha tempo para delongas. Ele era assistente de iluminação pleno 2 A, cargo especialmente criado pelo Doutor Assis para acomodar o suposto conterrâneo. “Bons contatos eu tenho. Se fizer um bom trabalho, me garanto”, Trenttini repetia para si mesmo enquanto ajeitava o pesado equipamento prestes a ser usado pela primeira vez. Trenttini já sonhava com o dia em que seria promovido a assistente de iluminação pleno 2 B.
O uísque 12 anos já deixava suas marcas pelo salão quando Abelardo foi surpreendido por um olhar feminino. Era uma coisa indubitável, daquelas que não remoem a menor desconfiança. “A senhorita Hebe cismou comigo”, resmungou sozinho. A futura dama das noites de segunda, famosas pelos selinhos nos convidados, foi direto ao ponto. “Quero ter contigo”. E assim foram às vias de fato, lá mesmo no prédio-sede do império de Doutor Assis.
Depois daquela longa e animada noite, Abelardo não teve dúvidas. Sua carreira teria um único rumo: os bastidores da televisão brasileira. E lá foi ele, trocando os pneus do Simca Chambord do Vigilante Rodoviário, decupando as fitas do Repórter Esso, envernizando as Portas da Esperança. Galgando posto acima de posto, pulou da Tupi para a Excelsior, da TVS para a Manchete. As mudanças, sempre para o alto, vieram na mesma velocidade com que as senhoritas lhe eram dóceis. Bastava estufar o peito e exibir aquele crachá com foto em preto e branco ao lado do logotipo da TV que não havia quem resistisse.
Tudo era festa – e quanto mais incendiária melhor. Chegou a trabalhar em duas emissoras para apaziguar o time feminino. Mas o melhor mesmo eram as manhãs de domingo. Trenttini não se continha tamanha a ansiedade pelas doces e suculentas manhãs de domingo! No final de semana, seu patrão tinha um programa longo, que ocupava mais de doze horas da programação do canal, que, aliás, era dele.
Havia uma infinidade de programas de auditório e, portanto, uma infinidade de lugares a serem preenchidos por mulheres bonitas. Trenttini driblava os recrutadores, fazendo sua própria triagem. “Venha fazer um misto quente lá em casa, depois te boto na primeira fila”. A escapadela não demorava meia hora, tamanha a volúpia de nosso personagem. Tão logo retornavam, a moçoila, já perfumada e de banho tomado, não só estava na primeira fila como ainda ganhava aviõezinhos de cruzados novos.
A fama foi se espalhando e Trenttini já era referência nas artes do baixo ventre. Dizem as más línguas que mesmo Fernandinha Moto-Serra e Ashley Boka-Loka fizeram questão de conhecer os predicados “daquele rapaz da televisão”. Só que nem tudo são flores nessa vida, e um dia o mundo resolve dar meia volta (com o perdão do trocadilho).
Certa feita, já tarde da noite, o expediente teve de se alongar por mais um tento, e não houve saída: “bora achar uma birosca para comer aquele rango”, ouviu-se em coro no estúdio. Sabe-se lá o que houve, talvez era mesmo muita chuva, mas o fato é que não acharam nem um churrasquinho grego para frear o estômago. Foi Trenttini quem deu a idéia: “vamos voltar, tenho um plano”. Chegando na emissora, nosso personagem abriu as portas de um estúdio diferente daquele onde trabalhavam. No começo, ninguém entendeu nada, mas, aos poucos, a solução mirabolante de Trenttini começava a fazer sentido. A trupe mataria a fome no estúdio da Ofélia! Estava tudo lá no estúdio da “musa” da culinária em 14 polegadas: panelas, pratos, talheres, ingredientes e até mesmo as receitas! “É claro que não vamos fazer leitão à pururuca agora que já é quase de manhã. Uma boa macarronada já quebra o galho”, resumiu o intrépido funcionário da TV – a esta altura, já um exímio diretor de imagem.
Logo o sol se levantou mas, sorte do grupo, nenhuma desconfiança veio junto. Passaram-se os dias e tudo transcorria bem, até que Abelardo Trenttini foi fazer valer diante de Glorinha, nova estagiária do RH. Foi um fracasso. A coisa não andou. Teve de sair apressado e culpar o chefe para evitar vexame maior. Pensou tratar-se de exceção, mas a coisa voltou a se repetir.
E repetiu-se tanto que teve de pedir socorro ao médico. “Doutor, nem frango assado, nem sorvete de creme! Nada me faz pedir um café e acender um cigarro”. Tomou remédio, fez terapia, pagou promessa, entrou na yoga. E nada. A fama que tanto lhe satisfazia já tinha cara de calendário do ano passado.
A vida seguiu. E Abelardo Trenttini não se deixou levar. Para compensar aquilo que lhe tiraram, passou a se cercar de belas mulheres. “É uma coisa meio marajá de Lisboa”, resumiu a um amigo, “tenho oito empregos e um salário”. Virou um sheik manso, um leão vegetariano, uma espécie de lobo a pastar tranqüilo, indiferente às ovelhas. Havia um harém a sua volta, mas apenas para o deleite visual. Assim, na falta de melhor diversão, aproveitou para fazer graça. “Deus é justo, mas essa tua saia!” repetia sempre que podia – ou não.
Dias desses, ao ler no jornal a coluna das fofocas, teve um estalo. Desses de dar tremedeira. Então rugiu: “Ofélia!”. Rugiu, não. Vociferou. E pôs-se a pensar que talvez todos aqueles anos no banco de reservas tenham origem naquela fatídica “noite da macarronada encantada”. Aquilo era veneno, concluiu.
Então não perdeu tempo. Foi tomar satisfação com a rainha da buchada de bode. Entrou escancarando as portas da TV Gazeta, invadiu o estúdio C e foi direto ao ponto: deu de dedo na mulher bem na hora de polvilhar a massa.
Aos berros, contou tim-tim por tim-tim o que lhe acontecera nos últimos anos. A angústia de atuar como gandula por tanto tempo. E eis que... Ouvindo tudo o que o Manso de Moema tinha a dizer, a dama da colher de pau não escondeu o sorriso no fundo da boca. “Tenho a tampa de sua panela. Venha buscar”, sussurrou Ofélia ao pé do ouvido de nosso personagem.
Fizeram gemada.
E não foi apenas a melhor gemada que Abelardo Trenttini já tinha feito, como também a primeira de muitas com Ofélia. E não só com Ofélia, mas com todo o harém que lhe rodeava.
O sheik manso de Moema é mais um conto da série de Os Paulistas.
Cheguei nesse blog meio que por acaso, mas gostei do estilo de narrativa!!! Mesmo sem perder o semi-anonimato, vocês poderiam transformar o blog em livro, e quem sabe em mini-série, como 'as cariocas', não??
ResponderExcluirFinalmente alguém se deu bem nesse blog.
ResponderExcluirParabéns Trentini
Concordo! Acho que vocês poderiam pensar em publicar um livro de crônicas. Com essas do blog, mas algumas inéditas. O blog está mandando muito bem.
ResponderExcluirOlha. Finalmente alguém aqui honrou os paulistas de verdade.
ResponderExcluir