quarta-feira, 30 de março de 2011

O turista da Bela Vista (Grande Anália Franco)

José Fernando Joaquim é um rapaz pacato, típico pai de família. Gosta de curtir os dois filhos e a esposa. Sua maior diversão é ir ao shopping, fazer compras, comer, pegar um filme infantil no cinema. Para sua sorte, pertinho da sua casa, na Bela Vista, há inúmeras opções. A que ele mais gosta é o shopping Anália Franco, que ele diz que praticamente vai a pé. Se quiser variar, pode visitar o Aricanduva, o Plaza Sul e o Center Norte – todos a um pulinho de sua casa.

Jornalista e antenado, recentemente, ele ficou muito contente com a notícia de que um novo empreendimento comercial estava prestes a ser inaugurado na Grande São Paulo: um mega shopping na Rodovia Raposo Tavares. Ao ler a notícia, nosso querido José Fernando Joaquim exclamou para sua mulher: “Olha, amor, que ótima notícia. Do lado da nossa casa!”

A esposa Tincia, que conhece o marido de longa data, apenas assentiu com a cabeça: “Claro, amor. Pertinho...”, disse com um sorriso amarelo, já pensando na longa viagem aos sábados e domingos. Amar é, antes de tudo, saber o momento de agradar o companheiro, refletiu a resignada esposa. Meu marido gosta de fazer turismo urbano, o que eu posso fazer?, acrescentou mentalmente.

Mas nem tudo é um mar de rosas na vida de José Fernando Joaquim. Nos últimos tempos, ele vem tendo duas grandes preocupações: uma no trabalho e outra em casa. Detentor de um típico nome-triplo, ele se deparou, de uns meses para cá, com a inconveniente situação de não ter como ser chamado. Vive uma intensa crise de personalidade. Ocorre que a Redação já tinha um José e um Joaquim e, há cerca de dois meses, contrataram um tal de Fernando.

Agora, toda vez que alguém quer se comunicar com nosso José Fernando Joaquim, há uma dificuldade de saber com quem a pessoa está efetivamente falando. O chefe diz: “Oh, José.” Antes mesmo de ele responder, o outro José, do outro lado da sala, se antecipa e diz: “Pois não.”  O chefe, então, esclarece: “não, eu to falando com o Fernando”. Eis que antes de ele poder atender ao chamado superior, o tal do cara-novo o atropela: “Pode falar.” Impaciente, o chefe apela: “Eu to falando com o Joaquim.” Já incomodado, nosso protagonista estufa o peito e faz até esboço de levantar para responder ao chefe, mas antes que ele o faça, é interrompido pelo outro Joaquim: “Opa, to aqui. O que precisa, chefinho querido?”

O chefe, homem muito ocupado, desiste da ordem que queria passar – na verdade, nem lembra. Enquanto tentava falar com o José Fernando Joaquim, foi chamado às pressas pelo governante da redação. Teve que sair correndo, deixando o enrosco dos nomes para trás.

A aflição em casa é ainda maior. Ocorre que, depois de uma militância árdua em assembléias de condomínio, ele conseguiu convencer os moradores do seu prédio – aquele, na região da grande Anália Franco – a não aderir à proposta de colocação de antena de operadora de celular no topo do edifício. “Isso aí traz doença e ainda danifica a estrutura do prédio”, bradava na reunião, para desespero da síndica, que via na antena uma possibilidade de aumentar a receita do condomínio. “Todo mundo fala que é um perigo! Sabe deus quantas doenças esses raios podem trazer para nós.”

Apesar da vitória, outro dia ele foi surpreendido com um comunicado colocado no elevador pela já desafeta síndica. Ela informava que, depois da resistência liderada pelo nosso Zé Joaquim, a operadora foi fazer a oferta para o prédio vizinho – que aceitou. Sem poder interferir, ele agora se vê em maus lençóis. O prédio vai ter que conviver com o efeito perigoso e incerto das ondas celulares, sem que isso ao menos represente diminuição nas contas no fim do mês. Vingativa, a síndica vai fazer questão de deixar isso bem claro aos moradores na próxima assembléia. É bom o nosso Zé começar a pensar em um bom lugar para se esconder – dos raios e dos vizinhos, doentes e doídos no bolso.

Já deixamos uma dica: que tal no shopping Anália Franco? Com certeza, nenhum vizinho pensará em procurar lá!

turista da Bela Vista é mais um conto da série Os Paulistas

quarta-feira, 16 de março de 2011

A garota do Púlpito

Atendendo a pedidos, Os Paulistas abrem novamente o espaço para as mulheres. Pois sem elas, as histórias perderiam a graça.


Carmem era uma garota encantadora. Com os brilhos nos olhos e o jeito de menina, chamava a atenção por onde passava. Simpática ao extremo, logo cresceu na profissão.

Carmem era a assessora de imprensa do cantor Amado Batista. Ela o acompanhava em seus shows e turnês e, claro, organizava a parte de imprensa.  Para onde ela ia, levava o púlpito que seria usado nas coletivas de imprensa. O objeto, que serve para encaixar os microfones e gravadores, já era praticamente uma pessoa da sua família.

Por falar em família, o pai de Carmem, um famoso general da Tropa de Choque dos Amigos dos Surfistas da Baixada Santista, sempre dizia a filha que se algum dia levasse um namorado em casa, ele o receberia com o armamento mais pesado que possuía. Carmem apenas sorria quando o pai falava isto e achava que era brincadeira.

Era comum o general Torres aparecer sem avisar nas coletivas ou no escritório do cantor apenas para conhecer os homens que trabalhavam com sua filha. Seus colegas de trabalho entendiam o recado e nenhum nunca ousou sequer em chamar Carmem para um café.

Certo dia, em um dos shows do Amado Batista no piscinão de Ramos, no Rio de Janeiro, Carmem estava armando o púlpito para a coletiva quando foi abordada por Ivan, um carioca sarado e fã de Amado Batista.

A química rolou naturalmente. Foi amor mesmo. Pareciam que se conheciam há anos. Trocaram telefone e no dia seguinte combinaram de se encontrar em Jacarepaguá. Tomando uma caipirinha de 51 em um bar, Ivan olhando nos olhos de Carmem cantou um trecho da música “Princesa” de Amado Batista:


Ao te ver pela primeira vez

Eu tremi todo

Uma coisa tomou conta
Do meu coração
Com esse olhar meigo de menina
Me fez nascer no peito, esta paixão
E agora não durmo direito
Pensando em você
Lembrando os seus olhos bonitos

Derretida, ela o convidou para vir a São Paulo conhecer sua família. Eles cantavam juntos músicas de Amado Batista, como “Fruto do Nosso Amor”, “Menina Meu Amor”,  e “Olhos Verdes”:


esses olhos verdes

que olham pra mim

enfeitam seu rosto
e me deixam assim
  
No trajeto Carmem repetia inúmeras vezes que o pai era turrão, um general bravo, mas que tinha bom coração. Que ele não precisaria ficar preocupado. Era apenas tipo de mau que ele gostava de fazer.

 Quando Ivan chegou para conhecer o pai de Carmem, ele o aguardava com uma pistola. Tiros foram ouvidos. O rapaz saiu correndo e nunca mais pisou em São Paulo. O pai, orgulhoso, abriu uma garrafa de vinho e com um sorriso enorme contava à esposa: "Com a minha filhinha ninguém mexe". 

A vizinha conta que Carmem nunca mais viu o rapaz e que a música “Meu Ex-Amor” de Amado Batista não para de tocar do quarto da linda moça.


“Eu tive um amor

amor tão bonito,

daqueles que matam
com sabor de saudade,
meu ex-amor
tem coisas que a gente não esquece,
mas você não merece
tanta dor,
foi bonito demais
mas eu estou sozinho
foi rico de amor
e hoje estou tão só.”


A Garota do Púlpito é mais um conto da série Os Paulistas. 



quarta-feira, 2 de março de 2011

O sheik manso de Moema

Biógrafos têm dessas: gastam tempo demais com as fanfarrices de coronéis corruptos ou as estripulias de barões mulherengos e deixam de lado os pequenos notáveis. Parou para pensar numa sinfonia sem carregador de piano? Nesta semana, Os Paulistas é especialmente dedicado a contar a história de Abelardo Trenttini. “O sheik manso de Moema” é um personagem indispensável para a história da televisão brasileira. Pode-se dizer que sua vida está para a telinha assim como a ressaca está para o envazador de garrafas.

O começo da saga de nosso personagem é incerto, mas o que ninguém põe dúvida é na sua participação naquela noite de 3 de abril de 1950. Doutor Assis recebia convivas dos mais recônditos cantos do Brasil no saguão dos Diários Associados, na rua 7 de Abril, com toda a pompa e circunstância que a chegada da televisão representava. A festa rolava solta, mas Trenttini não tinha tempo para delongas. Ele era assistente de iluminação pleno 2 A, cargo especialmente criado pelo Doutor Assis para acomodar o suposto conterrâneo. “Bons contatos eu tenho. Se fizer um bom trabalho, me garanto”, Trenttini repetia para si mesmo enquanto ajeitava o pesado equipamento prestes a ser usado pela primeira vez. Trenttini já sonhava com o dia em que seria promovido a assistente de iluminação pleno 2 B.

O uísque 12 anos já deixava suas marcas pelo salão quando Abelardo foi surpreendido por um olhar feminino. Era uma coisa indubitável, daquelas que não remoem a menor desconfiança. “A senhorita Hebe cismou comigo”, resmungou sozinho. A futura dama das noites de segunda, famosas pelos selinhos nos convidados, foi direto ao ponto. “Quero ter contigo”. E assim foram às vias de fato, lá mesmo no prédio-sede do império de Doutor Assis.

Depois daquela longa e animada noite, Abelardo não teve dúvidas. Sua carreira teria um único rumo: os bastidores da televisão brasileira. E lá foi ele, trocando os pneus do Simca Chambord do Vigilante Rodoviário, decupando as fitas do Repórter Esso, envernizando as Portas da Esperança. Galgando posto acima de posto, pulou da Tupi para a Excelsior, da TVS para a Manchete. As mudanças, sempre para o alto, vieram na mesma velocidade com que as senhoritas lhe eram dóceis. Bastava estufar o peito e exibir aquele crachá com foto em preto e branco ao lado do logotipo da TV que não havia quem resistisse.

Tudo era festa – e quanto mais incendiária melhor. Chegou a trabalhar em duas emissoras para apaziguar o time feminino. Mas o melhor mesmo eram as manhãs de domingo. Trenttini não se continha tamanha a ansiedade pelas doces e suculentas manhãs de domingo! No final de semana, seu patrão tinha um programa longo, que ocupava mais de doze horas da programação do canal, que, aliás, era dele.

Havia uma infinidade de programas de auditório e, portanto, uma infinidade de lugares a serem preenchidos por mulheres bonitas. Trenttini driblava os recrutadores, fazendo sua própria triagem. “Venha fazer um misto quente lá em casa, depois te boto na primeira fila”. A escapadela não demorava meia hora, tamanha a volúpia de nosso personagem. Tão logo retornavam, a moçoila, já perfumada e de banho tomado, não só estava na primeira fila como ainda ganhava aviõezinhos de cruzados novos.

A fama foi se espalhando e Trenttini já era referência nas artes do baixo ventre. Dizem as más línguas que mesmo Fernandinha Moto-Serra e Ashley Boka-Loka fizeram questão de conhecer os predicados “daquele rapaz da televisão”. Só que nem tudo são flores nessa vida, e um dia o mundo resolve dar meia volta (com o perdão do trocadilho).

Certa feita, já tarde da noite, o expediente teve de se alongar por mais um tento, e não houve saída: “bora achar uma birosca para comer aquele rango”, ouviu-se em coro no estúdio. Sabe-se lá o que houve, talvez era mesmo muita chuva, mas o fato é que não acharam nem um churrasquinho grego para frear o estômago. Foi Trenttini quem deu a idéia: “vamos voltar, tenho um plano”. Chegando na emissora, nosso personagem abriu as portas de um estúdio diferente daquele onde trabalhavam. No começo, ninguém entendeu nada, mas, aos poucos, a solução mirabolante de Trenttini começava a fazer sentido. A trupe mataria a fome no estúdio da Ofélia! Estava tudo lá no estúdio da “musa” da culinária em 14 polegadas: panelas, pratos, talheres, ingredientes e até mesmo as receitas! “É claro que não vamos fazer leitão à pururuca agora que já é quase de manhã. Uma boa macarronada já quebra o galho”, resumiu o intrépido funcionário da TV – a esta altura, já um exímio diretor de imagem.

Logo o sol se levantou mas, sorte do grupo, nenhuma desconfiança veio junto. Passaram-se os dias e tudo transcorria bem, até que Abelardo Trenttini foi fazer valer diante de Glorinha, nova estagiária do RH. Foi um fracasso. A coisa não andou. Teve de sair apressado e culpar o chefe para evitar vexame maior. Pensou tratar-se de exceção, mas a coisa voltou a se repetir.

E repetiu-se tanto que teve de pedir socorro ao médico. “Doutor, nem frango assado, nem sorvete de creme! Nada me faz pedir um café e acender um cigarro”. Tomou remédio, fez terapia, pagou promessa, entrou na yoga. E nada. A fama que tanto lhe satisfazia já tinha cara de calendário do ano passado.

A vida seguiu. E Abelardo Trenttini não se deixou levar. Para compensar aquilo que lhe tiraram, passou a se cercar de belas mulheres. “É uma coisa meio marajá de Lisboa”, resumiu a um amigo, “tenho oito empregos e um salário”. Virou um sheik manso, um leão vegetariano, uma espécie de lobo a pastar tranqüilo, indiferente às ovelhas. Havia um harém a sua volta, mas apenas para o deleite visual. Assim, na falta de melhor diversão, aproveitou para fazer graça. “Deus é justo, mas essa tua saia!” repetia sempre que podia – ou não.

Dias desses, ao ler no jornal a coluna das fofocas, teve um estalo. Desses de dar tremedeira. Então rugiu: “Ofélia!”. Rugiu, não. Vociferou. E pôs-se a pensar que talvez todos aqueles anos no banco de reservas tenham origem naquela fatídica “noite da macarronada encantada”. Aquilo era veneno, concluiu.

Então não perdeu tempo. Foi tomar satisfação com a rainha da buchada de bode. Entrou escancarando as portas da TV Gazeta, invadiu o estúdio C e foi direto ao ponto: deu de dedo na mulher bem na hora de polvilhar a massa.

Aos berros, contou tim-tim por tim-tim o que lhe acontecera nos últimos anos. A angústia de atuar como gandula por tanto tempo. E eis que... Ouvindo tudo o que o Manso de Moema tinha a dizer, a dama da colher de pau não escondeu o sorriso no fundo da boca. “Tenho a tampa de sua panela. Venha buscar”, sussurrou Ofélia ao pé do ouvido de nosso personagem.

Fizeram gemada.

E não foi apenas a melhor gemada que Abelardo Trenttini já tinha feito, como também a primeira de muitas com Ofélia. E não só com Ofélia, mas com todo o harém que lhe rodeava.


O sheik manso de Moema é mais um conto da série de Os Paulistas.